Blog “Tudo Sobre
Filmes”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
INTRODUÇÃO
O filme, imagem ou não da realidade, documento ou
ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História. (M. Ferro). O cinema se
converteu, por méritos próprios, em arquivo vivo das formas do passado ou, por
sua função social, em um agudo testemunho de seu tempo e, como tal, em um
material imprescindível para o historiador que assim o queira olhá-lo e
utilizá-lo. (J. E. Monterde)
As relações existentes entre a história e o cinema
não são recentes pois datam do surgimento deste, há um século. No entanto, o
seu estudo mais aprofundado remonta há apenas três décadas e ainda se encontra
longe de alcançar uma situação de relativo conforto no que concerne à
formulação de um arcabouço teórico sólido. Todavia, avanços foram realizados,
fixando alguns conceitos fundamentais acerca dessa relação, que não podem ser
ignorados pelo historiador ou por qualquer cientista social que deseje pensar a
história e o cinema dentro de uma perspectiva histórico-dialética. Alguns
desses conceitos dizem respeito ao enquadramento do filme enquanto documento
historiográfico e como discurso sobre a história. E é exatamente sobre esses
dois enfoques que trata este ensaio, estabelecendo as fases de um
aprofundamento progressivo. Mas, evidentemente, esse corte não exclui a
necessidade de se abordar outras questões relativas à relação cinema-história —
a exemplo do cinema visto como agente do processo histórico —, visto que tais
divisões são recursos da abstração, puramente esquemáticos e não são, de forma
alguma, estanques, sendo suas fronteiras estreitas. Em determinadas situações,
as problemáticas se interpenetram de forma tal que é impossível estabelecer
claramente as linhas que as separam.
Qualquer reflexão sobre a relação cinema-história
toma como verdadeira a premissa de que todo filme é um documento, desde
que corresponde a um vestígio de um acontecimento que teve existência no
passado, seja ele imediato ou remoto. No entanto, isso não seria suficiente
para que uma película se tornasse um documento válido para a investigação
historiográfica. Na verdade, o conceito historiográfico de documento se
relaciona fundamentalmente com dois pontos: a concepção de História do pesquisador
e o valor intrínseco do documento.
Foi somente a partir da década de 1970 que o filme
começou a ser visto como um possível documento para a investigação histórica.
Isso se deu em conseqüência de um processo de reformulação do conceito e dos
métodos da História, iniciado com o desenvolvimento da Escola dos Anais, na
França. O filme, seja qual for, desde então, passou a ser encarado enquanto
testemunho da sociedade que o produziu, como um reflexo — não direto e mecânico
— das ideologias, dos costumes e das mentalidades coletivas. Como não enxergar,
por exemplo, tratando-se do Brasil, elementos da ideologia da esquerda
brasileira — influenciada pelo modelo de reflexão da arte e da sociedade
adotado pelos Partidos Comunistas em todo o mundo — nas primeiras produções do
movimento cinemanovista, em início dos anos 60? Ou, em outro exemplo, como não
perceber a atmosfera da ideologia macarthista nos filmes produzidos nos Estados
Unidos durante as décadas de 1950 e 1960? Poderíamos listar inúmeros títulos
que comprovam essa afirmação, tais como: A cortina de ferro (1948,
Willian Wellman), Sob controle (1951, Willian Cameron Menzies), O
grande Jim Mclaim (1952, John Wayne), Homem no arame (1960, André de
Toth) ou Sob o domínio do mal (1962, John Franenheimer).
Nessa produção global, existe um tipo de filme que
possui uma importância suplementar para o historiador e sobretudo para o
professor de História: aquele que possui como temática um fato histórico. A
este chamaremos, por motivos meramente esquemáticos, de "filme
histórico", mesmo que a denominação seja em si insuficiente e até
redundante. Eles podem ser estudados pelo historiador de duas formas: primeiro,
como testemunhos da época na qual foram produzidos e segundo, como
representações do passado. Essa separação nos leva a classificar o caráter
documental dos filmes em primário e secundário. O filme pode ser utilizado como
documento primário quando nele forem analisados os aspectos concernentes
à época em que foi produzido. E, como documento secundário, quando o
enfoque é dado à sua representação do passado. Esse modelo segue, em linhas
gerais, a classificação dada à documentação escrita pela historiografia
tradicional. Dessa forma, pode-se afirmar que os "filmes históricos"
são duplamente documentos e podem ser utilizados como tais a depender do
enfoque dado pelo sujeito que o investiga. No entanto, pelo seu caráter
secundário e de representação, e, portanto, de discurso sobre um passado
remoto, os "filmes históricos" desempenham uma função documental
limitada sobre o período que retratam, principalmente para a pesquisa, assim
como também o fazem os documentos escritos secundários (como os textos que
remontam ao passado). Na verdade, esses filmes acabam por falar mais sobre o
seu presente, não obstante seu discurso esteja aparentemente apenas centrado no
passado. Mesmo assim, eles desempenham um papel significativo na divulgação e
na polemização do conhecimento histórico. Tomemos, como exemplo, a reação
provocada pela estréia do filme Terra e liberdade (1995, Ken Loach) na
Espanha e no restante do mundo: acirrar novas chamas sobre o debate
historiográfico da Guerra de Espanha, trazendo à tona temas que pareciam estar
esquecidos pela História, além de ampliar os limites desse debate até o grande
público. E esse potencial pode e deve ser aproveitado pelo professor e por
qualquer um que deseje refletir sobre a história, sem que, contudo, se perca a
dialética entre o passado e o presente, ponto chave para a análise e o
entendimento de qualquer "filme histórico".
Essa diferenciação (entre documentos primários e
secundários) levou o pioneiro e um dos maiores teóricos da relação
cinema-história, o historiador Marc Ferro, a formular a definição das duas vias
de leitura do cinema acessíveis ao historiador: a leitura histórica do filme
e a leitura cinematográfica da história. A primeira corresponde à
leitura do filme à luz do período em que foi produzido, ou seja, o filme lido
através da história, e a segunda à leitura do filme enquanto discurso sobre o
passado, isto é, a história lida através do cinema e, em particular, dos
"filmes históricos".
O FILME COMO TESTEMUNHO DO PRESENTE
O cinema é um testemunho da sociedade que o
produziu e, portanto, uma fonte documental para a ciência histórica por
excelência. Nenhuma produção cinematográfica está livre dos condicionamentos
sociais de sua época. Isso nos permite afirmar que todo filme é passível de
ser utilizado enquanto documento. No entanto, para utilizar-se
cientificamente de uma tal assertiva, requer-se cautela e cuidados especiais. A
forma como o filme reflete a sociedade não é, em hipótese alguma, direta e
jamais apresenta-se de maneira organizada (em circuitos lógicos e coerentes),
mesmo que assim o aparente. Por isso, é necessário que o pesquisador, ao tratar
o filme como fonte documental, distancie-se da concepção mecanicista pela qual
o reflexo social é abordado de forma direta, tão cara ao pensamento vulgar de
uma das vertentes da sociologia histórica dita marxista, nos séculos XIX e XX,
e que pode ser identificada, por exemplo, nas idéias defendidas por Plekhanov,
numa linha de pensamento que se afirmou como dominante no seio da II
Internacional e que influenciou bastante a teorização sobre a arte de vários
segmentos da esquerda em todo o mundo. Outros pensadores, por sua vez, se
opuseram à postura plekhanovista, a exemplo de Mehering, para quem a arte, na
sua dialética da criação, não constituía um mero reflexo social, valorizando,
assim, o momento subjetivo na teoria estética.(1)
Toda produção cinematográfica é um produto
coletivo, não apenas por conter elementos comuns a uma coletividade, mas por
ter sido, de fato, realizada por uma equipe (diretor, produtores, financiadores
e tantos outros). No entanto, nem isso, nem os seus condicionamentos sociais
eliminam a presença do caráter individual e artístico de cada obra, cuja
análise é, por vezes, dificultada pelo fato da arte nem sempre seguir modelos
lógicos e coerentes e possuir um grau elevado de subjetividade. Pense-se, por
exemplo, Discreto charme da burguesia (1972, Luis Buñuel) ou O
matador (1986, Almodóvar). É também necessário ressaltar que a estética
também se encontra condicionada socialmente. E não apenas a estética, como
também a própria linguagem cinematográfica como um todo (os movimentos de
câmara, os planos, os enquadramentos, a iluminação etc.). Portanto, esses
aspectos precisam ser levados em consideração no momento da análise de um filme
pelo historiador, o que, na maior parte dos casos, não é uma tarefa fácil,
devido à sua falta de preparação.
Para o melhor aproveitamento do caráter documental
do filme, é necessário que o pesquisador, o "analista", saiba
dissecar os significados "ocultos" (porém presentes: não se trata de
caminhar na via das elucubrações e especulações) existentes na película. O
método de investigação consiste, simplificadamente, em buscar os elementos
da realidade através da ficção.
O valor documental de cada filme está relacionado
diretamente com o olhar e a perspectiva do "analista". Um filme diz
tanto quanto for questionado. São infinitas as possibilidades de leitura de
cada filme. Algumas películas, por exemplo, podem ser muito úteis na
reconstrução dos gestos, do vestuário, do vocabulário, da arquitetura e dos
costumes da sua época, sobretudo aquelas em que o enredo é contemporâneo à sua
produção. Mas, para além da representação desses elementos audiovisuais, elas
"espelham" a mentalidade da sociedade, incluindo a sua ideologia,
através da presença de elementos dos quais, muitas vezes, nem mesmo têm
consciência aqueles que produziram essas películas, constituindo-se, assim,
como sentencia Ferro, em "zonas ideológicas não-visíveis" da
sociedade.(2) Postula-se, assim, que um filme, seja ele qual for, sempre vai
além do seu conteúdo, escapando mesmo a quem faz a filmagem.
Na mesma linha de pensamento, Siegfried Kracauer —
um dos pioneiros da utilização do cinema como documento de investigação
histórica — diz que "o que os filmes refletem não são credos explícitos,
mas dispositivos psicológicos, profundas camadas da mentalidade coletiva que se
situam abaixo da consciência".(3) Os filmes, na verdade, como todo produto
humano e, portanto, histórico, contêm elementos que lhes foram inseridos de
forma consciente e outros que não. Estes últimos, por sua vez, localizam-se
numa esfera inconsciente, seja do produtor tratado individualmente, seja da
coletividade como um todo. Dessa forma, a análise histórica do filme
permite-nos também introduzir o método psicanalítico no estudo de fenômenos
históricos, prática ainda pouco trabalhada (teórica e metodologicamente) pelos
historiadores que se têm mostrado muito reticentes com a utilização da
psicanálise em suas pesquisas.
É bom salientar que, se a sociedade exerce
influência sobre a produção cinematográfica, a recíproca também é verdadeira. A
ação exercida pelo cinema nos espectadores é um fato inquestionável, não
obstante ainda não se tenha chegado a um consenso quanto ao seu grau de ação.
Ter consciência desse mecanismo é fundamental para o trabalho analítico, visto
que boa parte do conteúdo do filme, sobretudo no cinema dito comercial, é
ditada pelos gostos e pelas expectativas do público os quais, por sua vez são
influenciados pelos filme, numa relação altamente dialética. Cabe, então, ao
pesquisador, buscar, detectar e diferenciar esses elementos. Mas essa tarefa,
por vezes árdua e tortuosa, só pode ser realizada parcialmente, visto que o
significado mais totalizante de uma película apenas pode estar presente nela
própria. Toda tentativa de análise de um filme implica em uma redução do seu
sentido em conseqüência da impossibilidade de uma análise total e acabada (só
alcançável como hipótese). Todo processo de transformação (que se configura
como uma abstração) das imagens em linguagem escrita ou verbalizada leva sempre
ao empobrecimento relativo do seu significado.
Em comparação aos documentos escritos, pode-se
afirmar que, em geral, os filmes possuem um maior grau de espontaneidade, fato
que abre, sem dúvida, amplos espaços para a prática da investigação. Isto
obriga o historiador a voltar seus olhos não apenas para o aparentemente mais
significativo, mas também para o mais "banal",
"corriqueiro": o detalhe quase imperceptível. Dessa forma, o cinema,
ao lado de outras formas de expressão, acaba construindo uma História diferente
da História institucionalizada, à qual Ferro se refere como sendo uma
"contra-História". Um exemplo disto pode ser encontrado na produção
cinematográfica dos regimes totalitários e repressivos, nos quais o artista é
obrigado a expressar o conteúdo de sua arte por meio de deslocamentos de
discursos.
A ANÁLISE DO DOCUMENTO
Tentaremos agora construir um modelo geral de
análise do filme enquanto documento que, de forma alguma, pretende ser um
esquema fechado que venha a se enquadrar em qualquer tipo de estudo. Trata-se
apenas de reunir, de forma ordenada, algumas das principais perguntas
pertinentes a uma tentativa de leitura histórica do filme, seja ele
"histórico" ou não.
Aqui tem-se um quadro que explicita em linhas
gerais os procedimentos básicos da leitura histórica do filme que propomos, que
serão detalhados em seguida.
QUADRO
O primeiro passo a ser dado por um pesquisador que
objetive a utilização de filmes como documento, além obviamente de outros
aspectos e atividades que envolvem o processo de início de uma pesquisa, é a
seleção dos títulos sobre os quais vai trabalhar. A seleção deve ser realizada
preferencialmente depois que o objeto e os objetivos da pesquisa estiverem bem
definidos. São esses que ditarão os critérios da seleção, que todavia, devem
privilegiar o conteúdo dos filmes em detrimento do seu valor estético ou
artístico.
Feita a seleção, parte-se para a análise individual
de cada filme. A primeira etapa da leitura histórica de uma película deve se
concentrar naquilo que denominamos de crítica externa do filme. Esta
etapa consiste nas seguintes atividades: resgate da cronologia da produção do
filme (período de produção e de lançamento); verificação e comparação da versão
da película a ser utilizada (no caso de existirem mais versões); as alterações
realizadas pela censura; levantamento da equipe técnica de produção, dos seus
custos de produção, das fontes financiadoras e de outros fatores importantes
(como o público-alvo, por exemplo) do processo de produção. Nesta etapa,
parte-se para o estudo, mesmo que superficial, da biografia dos produtores do
filme: a que classe social pertencem, que tipo de filmes já produziram, quais
as características mais gerais dessas produções e em que elas se assemelham à
película que está sendo pesquisada etc.
Só após essa etapa inicial, é possível se partir
para a análise, de fato, do conteúdo do filme (crítica interna do documento).
Primeiramente, deve-se buscar, no seu conteúdo, tudo aquilo que se coloca de
forma explícita, seja nos diálogos, na indumentária, nos gestos, no enredo e no
seu sentido mais geral, ou seja, extrair dele o que é dito de forma direta.
Posteriormente, deve-se passar para a análise do que, no filme, está presente
de maneira implícita, isto é, todo o conteúdo existente nas suas entrelinhas,
tudo aquilo que os produtores queriam que chegasse ao espectador, mas não o
fizeram, por algum motivo particular, direta e claramente. É necessário
salientar que essas duas etapas estão intimamente ligadas às intenções
(objetivos conscientes) dos produtores com a película. A escolha (do produtor
ou dos produtores) pela via implícita de representação e de formulação das
idéias e conteúdos pode estar relacionada com a existência das diversas
censuras de uma sociedade (política, econômica, moral, religiosa e social) e
com a sua vontade de burlá-la. Pode também se relacionar com as possíveis
vantagens de um conteúdo assimilado de forma indireta pelo público e com as
conseqüências provocadas por esse processo ou ainda com uma opção estética.
Essa etapa do processo analítico é muito importante, sobretudo para o estudo da
utilização propagandística do cinema e da ideologia presente no conteúdo da
propaganda ou para o estudo das formas artísticas de contestação, nos sistemas
autoritários, nos quais o artista é obrigado a expressar as suas idéias por
meios de mecanismos de ocultação e dissimulação. No entanto, é preciso não se
perder de vista que a presença da ideologia não se limita ao processo de
inclusão intencional de elementos na película. A ideologia aqui entendida como
"a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de
existência".(4)
A terceira etapa da análise diz respeito à
descoberta dos elementos inconscientes existentes no filme, ou seja, a tudo o
que existe na película que escapou à atenção ou ultrapassou as intenções de quem
a produziu. Nesta, devem ser buscados tanto os elementos inconscientes
presentes no filme que documentem em nível individual o autor, como, em nível
mais geral, a sociedade. É nesta etapa que a ideologia deve ser decodificada de
forma mais intensa. Afinal de contas, o processo de ideologização de uma
sociedade ultrapassa a esfera da consciência plena e só se consubstancializa no
momento em que a ideologia é interiorizada e passa a fazer parte daquele
universo ao qual se denomina comumente de "normal" (quando passa,
então, a ser dominante) e do qual poucos são conscientes. E a essa falta de
consciência plena também estão submetidos os produtores de cinema, mesmo
aqueles que se posicionam abertamente contra a ideologia dominante. Esses
elementos inconscientes devem ser buscados tanto no sentido mais geral do filme
como nos seus detalhes. Nesse percurso, o "analista" deve procurar se
distanciar o máximo possível dos seus próprios condicionamentos ideológicos,
mesmo que isso não possa ser alcançado plenamente, como sabemos.
A todas essas etapas do processo analítico devem
também estar submetidos os elementos estéticos e puramente cinematográficos
que, em grande medida, também são influenciados pelos condicionamentos
ideológicos e pelo contexto sócial, econômico, político e cultural de sua
época.
Após a realização de tais etapas, o
"analista" deve partir para uma última que consiste na comparação do
conteúdo apreendido do filme com os conhecimentos histórico-sociológicos acerca
da sociedade que produziu o filme e com outros tipos de filme, para então
sintetizar os pontos em que o filme reproduz esses conhecimentos e, por outro
lado, os elementos novos que ele apresenta para a compreensão histórica da
mesma. Só então o filme transformar-se-á em documento historiográfico
utilizável.
Evidentemente, a profundidade de cada etapa da
análise deve estar relacionada com os objetivos do "analista". Em
alguns casos, a análise pode se esgotar em uma película apenas, mas em outros
(como é mais comum), ela pode estender-se à produção cinematográfica global ou
parcial de um período específico ou a determinado gênero ou tipo de filme.
A leitura histórica dos filmes não exclui a
possibilidade de análise de extratos e fragmentos de filmes. Todavia, é
necessária muita precaução contra os perigos das fáceis deduções gerais
realizadas a partir de elementos isolados dos filmes. Para evitar esse perigo —
que acaba se tornando uma "tentação" no bojo do processo analítico,
não apenas no tratamento dos fragmentos (em que o perigo de fato é maior) —, é
muito importante (diríamos mesmo fundamental) a consulta a outras fontes de
pesquisa e o seu conseqüente cruzamento.
A documentação escrita sobre filmes não é muito
numerosa e muitas vezes é de difícil acesso, mas ela existe e deve ser
consultada quando possível, sobretudo para a primeira parte da análise. Além da
bibliografia que, porventura, possa haver, existem todos os documentos que
envolvem a produção e distribuição do filme, os roteiros (inclusive os
originais) e, ainda, as críticas cinematográficas que podem ser muito úteis ao
pesquisador que deseja contextualizar o filme, assim como tomar
conhecimento da sua repercussão. Mas é preciso salientar que esses documentos
também devem ser submetidos ao processo de crítica.
Todas essas questões nos permitem afirmar que,
enquanto documento histórico primário, qualquer filme também pode ser utilizado
didaticamente, como instrumento auxiliar do ensino da História, por meio da
realização da sua leitura histórica, em sala de aula, e da apreensão e
discussão dos seus elementos constitutivos. No entanto, para o sucesso de tal
empreendimento é necessário, na maior parte dos casos, que sejam fornecidos aos
estudantes os princípios básicos da relação cinema-história, e, além disso, que
eles já estejam familiarizados com noções do tipo: documento histórico,
objetividade e subjetividade na História, a relação dialética entre passado e
presente, ideologia etc. Portanto, esse tipo específico de utilização didática
de filmes, ou seja, como documentos primários, deve aplicar-se mais ao ensino
universitário e, só em casos particulares, deve ser dirigido ao ensino
secundário. Um outro limite dessa utilização diz respeito ao objeto de ensino
que, neste caso, se restringe, cronologicamente, à história do século XX.
O FILME COMO DISCURSO SOBRE O PASSADO
Desde um passado muito remoto, a história vem
servindo de inspiração temática para muitas formas de representação, seja ela
lendária, a exemplo das epopéias narradas por Homero, teatral, como, por
exemplo, as tragédias de Ésquilo ou Aristófanes, literária, plásticas e tantas
outras. Essa tendência foi cristalizada após a Revolução Francesa e a difusão
do Romantismo. Com o advento do cinema e a sua popularização (leia-se
transformação em meio de comunicação de massa), essa característica adquiriu
contornos muito mais abrangentes. Não é por acaso que um número muito elevado
dos filmes produzidos mundialmente possui um referente histórico.
Dessa forma, pode-se afirmar que o "filme
histórico", como detentor de um discurso sobre o passado, coincide com a
História no que concerne à sua condição discursiva. Portanto, não é absurdo
considerar que o cineasta, ao realizar um "filme histórico", assume a
posição de historiador, mesmo que não carregue consigo o rigor metodológico do
trabalho historiográfico.
O grande público, hoje, tem mais acesso à História
através das telas do que pela via da leitura e do ensino nas escolas
secundárias. Essa é uma verdade incontestável no mundo contemporâneo, no qual,
de mais a mais, a imagem domina as esferas do cotidiano do indivíduo urbano. E,
em grande medida, esse fato se deve à existência e à popularização dos filmes
ditos históricos.
No entanto, esses filmes encontram uma grande
reação negativa por parte do público dito "culto", incluindo uma boa
parcela dos historiadores, que enxerga nessas produções apenas um meio de
vulgarização da História, o que não se constitui, na sua totalidade, numa
crítica verdadeira. Colocando-se contra essa postura, o historiador não deve
menosprezar, nem ficar à margem desse processo de difusão do saber histórico
através do cinema e, atualmente, também da televisão e do videocassete, mas sim
aproveitar o seu potencial (que pode ser documental ou didático, se aplicado ao
ensino da História), contribuindo, dessa forma, para o desenvolvimento de uma
leitura cinematográfica da história eficiente e formadora de conhecimento
científico e consciência histórica.
Com os avanços tecnológicos e científicos
alcançados pela humanidade, em especial no domínio da comunicação, neste fim de
milênio, modificaram-se bastante os tipos de relações sociais empreendidas pelo
homem. E desta nova era que se esboça, com contornos ainda indefinidos, o
cientista social não se pode distanciar, sob o risco de se encontrar
inteiramente fora da realidade do processo histórico em curso. Nesse sentido,
assiste-se ao surgimento de uma necessidade (histórica) imperativa para as
ciências que estudam o homem e as suas relações: sua modernização, por meio da
integração com os novos recursos da comunicação e, no nosso caso em particular,
com o cinema.
Os "filmes históricos", ou seja, aqueles
em que o seu enredo se reporta a épocas passadas (em relação ao período em que
foi produzido, e não ao do espectador) são, como quaisquer outros, como já
dissemos acima, também documentos do período de sua produção. E esse enfoque
jamais pode ser perdido, mesmo que o interesse do observador não se concentre
nesse período. Esses filmes também são documentos secundários do fenômeno que abordam
em seu enredo e, não obstante possuam uma utilidade limitada para o pesquisador
(no que concerne ao seu interesse sobre o período retratado), eles podem se
tornar muito importantes para o processo de ensino-aprendizagem da História.
Mas a sua utilização deve levar em consideração uma série de questões, das
quais levantaremos algumas, consideradas fundamentais.
A primeira questão a ser levantada diz respeito
exatamente à relação passado-presente contida no filme. Qualquer representação
do passado existente no filme está intimamente relacionada com o período em que
este foi produzido. Por exemplo, a escolha de um tema histórico e a forma como
ele é representado em uma película são sempre ditadas por influências do
presente. Neste sentido, pode-se falar de um presentismo na construção
histórico-cinematográfica, fenômeno já assinalado por filósofos da história,
como Benedetto Croce, e historiadores, como Collingwood, em relação ao discurso
histórico. Em muitos casos, o retorno ao passado funciona como um instrumento
de ocultação de um conteúdo presente que se deseja passar para o espectador. O
que dizermos, por exemplo, da relação passado-presente existente no filme Alexandre
Nevsky de Serguey Eisenstein? Não seria o retorno ao século XIII (durante
um episódio histórico no qual a "grande" Rússia é atacada de surpresa
pelos cruéis exércitos teutônicos — isto é, germânicos —, mas, pela mobilização
popular, consegue defender-se e rechaçar os alemães, consolidando sua força) um
instrumento ideológico que visava claramente agir sobre a consciência dos
indivíduos do seu tempo? Ou seriam pura e simples coincidência as semelhanças
entre as conjunturas político-militares de 1242 e 1938? A resposta nos parece
bastante clara e pode ser comprovada pelos próprios fatos que se seguiram à
finalização do filme: ele foi censurado até 1941, em conseqüência da assinatura
do Pacto Germano-Soviético, e só foi liberado após a invasão do território
russo pelos exércitos nazistas. Mas, na maioria das vezes, a relação
passado-presente se dá de forma menos direta e consciente. Por isso, a
utilização dos "filmes históricos" não pode prescindir de uma leitura
histórica, ainda que esta não seja realizada de forma tão minuciosa (quanto
seria para sua utilização como documento primário).
Todo "filme histórico" é uma
representação do passado e, portanto, um discurso sobre o mesmo e, como tal,
está imbuído de subjetividade. Para se captar o seu conteúdo histórico é
necessário que o historiador, primeira e momentaneamente, renuncie à busca
objetiva da "verdade histórica". Na película, ele apenas encontrará
uma visão sobre um objeto passado, que pode conter "verdades" e
"inverdades" parciais. Um filme nunca poderia conter a verdade plena
de um acontecimento histórico, mesmo se assim o desejasse o seu autor. Ainda
que aborde fatos reais, nunca abandonará a sua condição de representação e,
portanto, de algo que, no máximo, apenas representa o real e que não coincide
com este. E esta afirmativa também se aplica aos documentários. A realização de
um "filme histórico" sempre implica em seleções, montagens,
generalizações, condensações, ocultações quando não em invenções ou mesmo
falsificações. Dessa forma, o que deve ser buscado em um "filme
histórico" não é a "verdade histórica" contida nele, mas a verossimilhança
com o fenômeno histórico que retrata.(5)
Mas, sob a denominação de "filmes
históricos", coexistem numerosos tipos de filmes que se diferenciam
bastante quanto ao seu conteúdo, forma e suas possibilidades de tratamento e
utilização. Isso gera uma necessidade de se criar uma classificação para os
"filmes históricos". A primeira e mais geral classificação, por nós
proposta, dos "filmes históricos" consiste na diferenciação entre
documentários e não-documentários. Os documentários são os filmes cujo enredo
não se baseia numa trama representativa (com atores representando personagens
históricos), mas no relato, na descrição ou na análise de um acontecimento
histórico. Em geral, esses filmes são realizados através de montagens de
imagens do passado, de documentos filmados e de cenas do presente, que possuem
um texto de fundo narrado e são, muitas vezes, intercaladas por entrevistas
realizadas contemporaneamente à produção do filme. Os não-documentários
correspondem a todos os filmes cujo enredo possui uma história, uma trama. É
preciso que se tenha em mente que essa classificação não é estanque e absoluta
e que muitas produções podem se enquadrar concomitantemente nos dois tipos de
filmes. Como exemplos, podemos citar alguns documentários que utilizam imagens
reconstruídas (ficcionais), como Paris 1900 (1947, Vedrés). Como exemplo
também interessante, temos vários documentários que tratam da Revolução Russa
que utilizam imagens do filme Outubro (1927, Eisenstein), alguns até sem
lhe fazer referências, ao lado de imagens reais. Por outro lado, existem
aqueles filmes de ficção que se utilizam de imagens reais, a exemplo de O
homem de mármore (1977, Wadja) ou do mais recente JFK: a pergunta que
não quer calar (1991, Oliver Stone). É importante ainda diferenciar os
"filmes históricos" dos filmes que tratam de acontecimentos, hoje
históricos, mas que no momento de sua produção lhes eram contemporâneos. Esses
filmes podem ser perfeitamente utilizados enquanto recursos didáticos, mas não
podemos lhes atribuir a condição de discurso histórico. Por exemplo, um
documentário produzido no bojo de uma guerra, com imagens do conflito, não se
constitui em um "filme histórico", mesmo que, atualmente, possua um
valor histórico. No entanto, um documentário produzido na década de 1970,
utilizando as mesmas imagens, é um "filme histórico".
Uma das características fundamentais do "filme
histórico" tradicional, principalmente o hollywoodiano — que é o mais
difundido e popular e cujo modelo se estende, em maior ou menor grau, a outros
centros de produção que por ele são direta ou indiretamente influenciados —, é
a primazia dada à emoção em detrimento do aspecto racional.(6) Isso ocorre,
como bem argumenta Monterde, devido à presença dominante do
"espetáculo" no universo cinematográfico.(7) Esse fato, muitas vezes,
acaba por dar ênfase a aspectos pitorescos do passado e por facilitar a
manipulação ideológica do espectador. Uma outra característica dos "filmes
históricos" é a presença da ideologia de representação burguesa, herdada
dos modelos renascentistas, que se baseia na perspectiva central como ponto
chave para a construção de uma linguagem linear. Esse modelo, mesmo que se
tenha mantido dominante ao longo do século, foi duramente contestado por
diversos movimentos cinematográficos, sendo, dentre estes, o surrealista aquele
que mais se opôs, apresentando uma proposta de cinema inteiramente nova,
inclusive no âmbito do cinema histórico.
Uma outra questão de suma importância que deve ser
levantada ao se abordar os "filmes históricos" diz respeito à sua
relação com a história escrita. Teriam os "filmes históricos"
autonomia em relação à historiografia escrita? Seriam eles criadores de um
saber histórico científico específico? Essa é uma questão bastante polêmica e
difícil de ser respondida até as últimas conseqüências. Para Ferro, esses
filmes contribuem para a difusão dos conhecimentos históricos (função
pedagógica), mas pouco intervêm como contribuição "científica" do
cinema para a inteligibilidade dos fenômenos históricos. Constituem uma
transcrição cinematográfica de uma visão histórica que foi concebida por
outros. Ele minimiza o valor do filme como discurso sobre o passado afirmando
que "nos filmes que tratam do passado, nosso interesse não está,
particularmente, na sua representação do passado, mas na escolha dos temas, nos
gostos da época, nas necessidades de produção, nos lapsos do criador".(8)
Ao mesmo tempo, Ferro acaba por valorizar a função de documento primário dos
filmes, quando diz que o historiador deve "partir da imagem, das imagens.
Não buscar nelas somente ilustração, confirmação ou o desmentido de outro saber
que é o da tradição escrita".(9) Já R. Rosenstone afirma o oposto: "o
cinema — ao assumir tarefas da História: narrar, explicar e interpretar o
passado —, nos diz coisas muito distintas das que figuram nos livros".(10)
Este canteiro parece estar totalmente aberto à investigação.
OS DOCUMENTÁRIOS
Os documentários, não obstante a sua aparente
objetividade, também são representações sobre o passado e como tais devem ser
tratados. A seleção do tema, dos fatos abordados, das imagens e o seu
encadeamento, a música utilizada, o conteúdo do texto narrado e a sua inserção,
tudo isso faz parte do universo de subjetividade presente no filme, que deve
ser abordado à luz da relação passado-presente.
A aparência de objetividade e de neutralidade dos
documentários acaba por facilitar a sua utilização propagandística que cria
seus próprios mecanismos de indução, ocultação e falsificação dos fenômenos
históricos, aos quais o historiador deve estar muito atento. A falsificação das
imagens nos documentários, durante o século XX, foi um instrumento de
manipulação bastante utilizado, sobretudo nos contextos bélicos. Durante as
duas Grandes Guerras, por exemplo, muitas imagens falsas de vitórias dos
aliados e derrotas dos adversários foram apresentadas aos exércitos de ambos os
lados como instrumento de manipulação.
Todo documentário, para além dos fatos históricos
narrados, cuja veracidade deve ser avaliada, revela uma visão da História e possui
uma interpretação para o objeto histórico sobre o qual se debruça. E estes
pontos devem ser detectados e analisados pelo historiador. Muitas vezes, um
documentário contém um texto extremamente verdadeiro no que consiste à narração
dos fatos, mas a interpretação geral que este dá ao fenômeno se encontra
comprometida.
Os documentários podem ser úteis ao professor de
História, tanto àquele que deseja apenas aproveitar o potencial narrativo da
linguagem cinematográfica quanto àquele, principalmente, que deseja polemizar
sobre as causas e o sentido de um acontecimento histórico. Todos esses
elementos não minimizam o valor documental intrínseco (como registro direto de
um fato histórico real) das imagens apresentadas em um documentário, sobretudo
aquelas que foram gravadas no bojo do acontecimento narrado. No entanto, o
valor do documentário pode ficar comprometido pela forma como as imagens são
apresentadas e por todos os elementos subjetivos que acompanham a sua produção.
Ao longo do século XX, duas correntes
cinematográficas se manifestaram na produção de documentários: uma delas via
nas imagens apenas um testemunho direto de um acontecimento histórico,
considerando que o seu valor se limitava à função de registro. Como exemplo
desse tipo de perspectiva, podemos citar o movimento cinematográfico russo,
encabeçado por Dziga Vertov, denominado "cinema-olho", que
influenciou muitos outros cineastas no mundo; a outra considerava a câmera
apenas como instrumento para a criação de um discurso histórico próprio, exterior
ao conteúdo intrínseco das imagens. Esta última pode ser encontrada, por
exemplo, na produção do cineasta Jean Vigo.
OS NÃO-DOCUMENTÁRIOS
Existe uma infinidade de filmes não-documentários
que se reportam ao passado. Todavia, eles se diferem bastante uns dos outros,
fato que dificulta que lhes seja dado um tratamento científico e sistemático. É
pensando nessa dificuldade que propomos uma classificação para os "filmes
históricos" não-documentários, baseada em critérios que consideram o conteúdo
histórico dos mesmos e que compreende os seguintes tipos:
·
Reconstrução histórica: corresponde aos filmes que abordam acontecimentos
históricos cuja existência é comprovada pela historiografia e que contam com a presença
de personagens históricos reais no seu enredo (interpretados por atores), cuja
fidelidade é relativa e se modifica de um filme para outro. Não se trata apenas
dos filmes em que se realiza uma reconstrução audiovisual do passado (o que
dificilmente é levado às últimas conseqüências) ou mesmo dos fatos, mas também
daqueles em que são esboçadas interpretações históricas, utilizando fatos
comprovadamente reais. Como exemplos de reconstruções históricas, podemos citar
Outubro (1927, S. Eisenstein), A lista de Schindler (1993, S.
Spilberg), Spartacus (1960, S. Kubrick), 1592: a conquista do paraíso
(1992, Ridley Scott) ou A rainha Margot (1994, Patrice Chéreau).
·
Biografia histórica: trata-se dos filmes que se debruçam sobre a vida de um indivíduo e as
sua relações com os processos históricos. Na maior parte dos casos, esses
filmes se limitam à abordagem da vida dos chamados "grandes homens",
ou seja, aqueles indivíduos destacados pela historiografia escrita e,
principalmente, a tradicional. Como exemplos, citamos Napoleão (1927,
Abel Gance), Cromwel (1970, Ken Hughes), Lamarca (1994, Sérgio
Resende) ou Rosa Luxemburgo (1986, Margareth von Trotta).
·
filme de época:
compreende aqueles filmes cujo referente histórico não passa de um elemento pitoresco
e alegórico, e cujo argumento nada possui de histórico no sentido mais amplo do
termo. São inúmeros os exemplos de filmes de época: Sissi (1955, Ernst
Marishka), A amante do rei (1990, Axel Corti) ou Angélica e o rei
(1965, Borderie). Mesmo assim, alguns deles podem possuir elementos
interessantes para o historiador, principalmente aqueles em que existe uma
preocupação formal maior com a reconstrução ambiental e dos costumes, como é o
caso de Ligações perigosas (1988, Steaven Frears), por exemplo.
·
Ficção histórica: abarca os filmes cujo enredo é ficcional, mas que, ao mesmo tempo,
possui um sentido histórico real. Como exemplo deste tipo de filme, podemos
citar O nome da rosa (1986, Jean-Jaques Annaud), A greve (1923,
Eisenstein), A guerra do fogo (1981, Jean-Jaques Annaud), Lili
Marlene (1980, Fassbinder) etc.
·
Filme-mito: são
aqueles filmes que se debruçam sobre a mitologia e que podem conter elementos
importantes para a reflexão histórica. Muitas vezes, o mito é apresentado em
paralelo a fenômenos históricos reais. Podemos citar, por exemplo, El Cid
(1961, Antonny Mann) e A guerra de Tróia (1961, Giorgio Ferroni).
·
filme etnográfico: agrupa os filmes realizados com interesses científico-antropológicos.
Como exemplo, podemos citar a produção pioneira de Flaherty (Nanouk, o
esquimó).
·
adaptações literárias e teatrais: engloba os filme que são oriundos de uma
adaptação de obras literárias e teatrais do passado. Alguns exemplos são Germinal
(1995, Claude Berri) , Luciola: o anjo pecador (1975, Alfredo Sternheim),
Os miseráveis (1978, Gleal Joadan), Hamlet (1990, F. Zeffirelli),
Henrique V (1945, Laurence Olivier), 1984 de Orwell (1984,
Michael Readford).
Como se pode ver, são inúmeros os tipos de
"filmes históricos" e essa classificação poderia ser muito mais
extensa caso este fosse o nosso objetivo. Essa classificação, aqui, tem apenas
o objetivo de exemplificar um pouco as possíveis diferenças dos "filmes
históricos" que exigem, por sua vez, tratamentos diferenciados.
É importante ressaltar ainda a discussão acerca dos
referentes históricos nos quais se basearam os produtores do filme no momento
da sua realização. Os referentes históricos de um "filme histórico"
podem ter várias origens: a historiografia escrita, a mitologia, o conhecimento
histórico popular, uma pesquisa própria do cineasta e, o que é muito
importante, sobretudo para o cinema dito comercial, a concepção da história
(simbólica audiovisual e de conteúdo) do espectador — que tem sido modulada, ao
longo da sua existência, pelos elementos referenciais enunciados acima, mas
também pelo próprio cinema que acaba, pelo processo de repetição, criando
modelos históricos específicos.
O QUESTIONAMENTO DO "FILME HISTÓRICO"
O primeiro ponto que se deve ter esclarecido ao se
iniciar o trabalho de análise de um "filme histórico" é, como já
afirmamos acima, que nele não deve ser buscada a "verdade histórica
objetiva" e que o processo inventivo muitas vezes não se opõe a um sentido
histórico coerente e construtivo. E o seu sentido não deve ser procurado apenas
nos fatos (exceto se o objetivo da análise do filme se limita à busca destes),
mas e sobretudo no argumento global. Esse sentido, porém, não é fornecido de
forma acabada pelo filme; ele é construído dialeticamente no processo de
análise do sujeito com seu objeto. Por isso, cada filme pode, perfeitamente,
conter em si sentidos diversos e mesmo conflitantes, pois como afirma Pierre
Sorlin, "o sentido fílmico não é uma significação inerente ao filme, mas
são as hipóteses de investigação que permitem revelar certos conjuntos
significantes".(11) E, dessa forma, o cinema coincide com a História em
mais um aspecto: a sua capacidade de produzir sentido.
A realização da leitura cinematográfica da história
em um "filme histórico", seja ele documentário ou não, deve ser
sempre precedida pela sua leitura histórica. Feito isto, o "analista"
deve ir em busca das verossimilhanças históricas existentes no filme e
principalmente do seu sentido. Primeiramente, devem ser analisados os fatos
históricos apresentados pelo filme: são eles comprovados pela historiografia
escrita? São eles inventados pelo autor? Inteiramente? Com que critérios? É
importante, nesse percurso por vezes tortuoso, estar-se sempre atento à
presença dos anacronismos. Depois, deve-se buscar apreender a concepção
histórica do filme e as interpretações que ele apresenta sobre o acontecimento
retratado. Uma outra etapa importante é a da comparação dos elementos retirados
do filme com os conhecimentos oriundos da historiografia escrita ou oral, na
tentativa de captar o que ele apresenta de novo. E, com a síntese de todos
esses elementos, formular-se-á o sentido histórico do filme.
A prática da análise histórica de um filme (seja
como documento ou como discurso sobre o passado), sobretudo para o professor de
História, muitas vezes é dificultada pela sua falta de preparação, tanto a
nível teórico quanto técnico. Conhecimentos básicos acerca da relação
cinema-história, das novas teorias da comunicação e da educação — que
consideram, de mais a mais, a imagem como um elemento fundamental do processo
de aprendizagem contemporâneo —, da linguagem cinematográfica e das técnicas de
cinema e vídeo são muito importantes. Mas o não domínio destas áreas não deve
inibir aqueles que desejem utilizar cientificamente o potencial do cinema no
ensino da História. Esses conhecimentos básico (veja-se que não se trata de uma
especialização nessas áreas) podem ser adquiridos aos poucos, em paralelo à
dinâmica da prática.
NOTAS
(1) Veja-se KONDER, L. Os marxistas e a arte.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p.47-52.
(2) Veja-se FERRO, M. Cinema e História. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 93.
(3) KRACAUER, S. De Caligari a Hitler: uma
história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1988. p. 18.
(4) Conceito de Altusser apud VOVELLE, M. Ideologias
e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.11.
(5) Veja-se MONTERDE, J. E. Historia, cine y
enseñanza. Barcelona: Laia, 1986. p.102-4.
(6) Aliás, essa é uma característica geral da
linguagem audiovisual e cinematográfica como um todo, mas que é exacerbada nos
"filmes históricos".
(7) Ibid., p.13-9.
(8) FERRO, M. A história vigiada. São Paulo:
Martins Fontes, 1989. p. 41-75.
(9) FERRO, M. Cinema e História. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.86.
(10) PAZ, M. A., MONTERO, J. Historia y cine:
realidad, ficción y propaganda. Madri: Complutense, 1995. p.16.
(11) Veja-se MONTERDE, op. cit. p. 24.